Cerca de 52 mil pessoas da cidade brasileira de Maricá, na região metropolitana do Rio de Janeiro, estão aptas para receber uma renda básica no valor correspondente a aproximadamente três quartos da linha de pobreza nacional como parte de um novo e importante programa para testar políticas de renda básica no Brasil.
A política, chamada Renda Básica de Cidadania, no valor de R$ 130 por pessoa ao mês; de acordo com dados recentes da OECD, isso equivale cerca de U$ 64 dólares por mês. No contexto brasileiro, a linha de pobreza no Brasil é estabelecida como R$ 178 por mês e o salário mínimo mensal por emprego de tempo integral é R$ 998; uma família de quatro pessoas, cada uma recebendo R$ 130 por mês, acabaria recebendo mais de meio salário mínimo por meio do programa. Muitas famílias que vivem abaixo da linha de pobreza poderão superá-la. A partir de novembro, cerca de metade dos indivíduos elegíveis serão cadastrados e o cadastro deverá ser concluído no início de 2020.
Maricá, uma cidade de cerca de 157 mil habitantes localizada a pouco mais de uma hora de carro do Rio de Janeiro e atualmente governada por um prefeito de um partido de esquerda, o Partido dos Trabalhadores, não é a primeira cidade a fazer esse tipo de experiência. Nos últimos anos, ocorreram iniciativas de renda básica por toda parte, de Stockton, Califórnia ao Quênia, Finlândia e Ontário. Nos EUA, a ideia da renda básica foi popularizada pelo candidato presidencial Andrew Yang, que fez dela sua principal bandeira.
Mas o programa de Maricá se destaca por algumas razões. Não é um programa piloto, como em outras incursões da renda básica, mas é uma política pública adotada pelo poder municipal. Todos que vivem em Maricá há pelo menos três anos e com renda suficientemente baixa para ser elegível (bem acima do salário mínimo brasileiro) receberá o benefício. Como consequência, a escala será consideravelmente maior do que de outros programas piloto. O piloto na Finlândia envolveu cerca de 2 mil pessoas; cerca de 26 mil pessoas tiveram ajuda no piloto do Quênia e 52 mil pessoas são elegíveis por meio do programa de Maricá.
Mais importante, o programa de Maricá tem prazo indefinido e tem um fluxo de financiamento exclusivo. Como diversos municípios dos arredores do Rio, Maricá recebe uma parte dos royalties do petróleo brasileiro. O país é o nono maior produtor de petróleo no mundo, logo atrás do Irã e dos Emirados Árabes. O programa de renda básica tem financiamento fora do orçamento da cidade, principalmente a partir desses royalties. Isso significa que tem uma fonte de receita estável e não depende de impostos, assim como o dividendo do Fundo Permanente do Alasca ou do programa de renda básica do Irã, ambos financiados pelo petróleo e que se provaram bastantes sólidos.
Diferentemente desses programas, no entanto, o programa de Maricá está sendo configurado desde o início para acompanhamento. Pesquisadores do Jain Family Institute, uma organização de pesquisa social e econômica de Nova York, estão trabalhando com uma equipe de pesquisadores brasileiros, liderados por Fábio Waltenberg, da Universidade Federal Fluminense, para avaliar o programa e ter acesso a uma grande quantidade de dados sobre o uso do benefício.
Como o programa Maricá é um modelo de renda básica completo e com financiamento estável, pode ser uma das tentativas mais interessantes da política até agora. Para saber se a renda básica funciona como uma política pública, precisamos saber não apenas se os benefícios financiados por meio da filantropia (como muitos pilotos são) ajudam; precisamos saber se os benefícios financiados pelo governo, por meio de impostos e royalties, alcançam resultados positivos. Maricá, diferentemente da maioria dos estudos realizados até hoje, permite que os pesquisadores testem isso.
Também representa o início da concretização de uma lei aprovada em 2004, na gestão do presidente de esquerda Luiz Inácio Lula da Silva, que estabeleceu uma transferência de renda como direito de todos os brasileiros. No entanto, a lei não implementou de fato o benefício, e um programa nacional de renda básica completo não foi orçado nos anos seguintes, tornando a lei uma promessa sem fundamento.
Mas Eduardo Suplicy, senador por muitos anos e político atuante no município de São Paulo que foi que foi a força motriz da lei de 2004, vê Maricá como um passo em direção à verdadeira implementação da lei. “Há consequências para cada homem, cada mulher, cada criança, e em Maricá teremos uma maneira de saber as principais consequências da experiência de renda básica”, me disse Suplicy.
Como vai funcionar o programa de Maricá
Um aspecto importante da renda básica em Maricá é que o programa não distribui a moeda real: distribui mumbucas. Essa é a moeda local, emitida pelo Banco Mumbuca em Maricá, que só pode ser usada no município. Você acumular mumbucas em sua conta no Banco Mumbuca, gastá-las com um cartão ou usar seu telefone celular para recebê-las e usá-las. A cidade ofereceu um pagamento básico extremamente pequeno – cerca de 10 mumbucas, ou 10 reais, mensais por pessoa – para seus moradores mais pobres há alguns anos, como detalhado no vídeo acima; o novo programa é uma expansão grande dessa iniciativa.
O uso de moeda local é uma característica crucial do projeto, diz Paul Katz, historiador e membro do projeto de Renda Básica do JFI. “O temor é que, de outra maneira, o dinheiro saia da cidade”, explica Katz, observando que muitos dos residentes de Maricá trabalham no mercado de trabalho do Rio. “A ideia é que o dinheiro permaneça lá e constitua uma economia solidária”
Além do desejo de concentrar os gastos do programa em Maricá, o uso de uma moeda alternativa oferece distintas vantagens na perspectiva do estudo. Como todas as transações em mumbuca se dão através do Banco Mumbuca, ele terá dados detalhados sobre onde exatamente essa renda será gasta e como os gastos dos beneficiários mudaram após o ingresso na política. Isso é muito melhor do que alguns dos dados auto-reportados nos quais outras avaliações básicas de receita tiveram que confiar.
O uso das mumbucas também permite que os pesquisadores identifiquem facilmente os efeitos da inflação. Uma preocupação constante de programas de renda em larga escala como o de Maricá é que o fato de injetar mais dinheiro e estimular os gastos do consumidor poderia causar aumento de preços, mas há milhares de fatores que afetam o valor do gasto de uma moeda nacional, o que torna os efeitos de qualquer programa difíceis de determinar.
Além do mais, experimentos limitados com pouco milhares de participantes tornam difícil tirar conclusões sobre impactos macroeconômicos. Mesmo que um experimento de 2 mil pessoas na Finlândia não tenha provocado inflação, isso não nos diz nada sobre o que uma política destinada a 5,5 milhões de pessoas na Finlândia faria.
O experimento de Maricá é diferente: qualquer efeito sobre o preço estará localizado na cidade, porque é único lugar onde se pode usar mumbucas, e sendo capaz de comparar a trajetória de mumbucas com outras municípios vizinhos com seus respectivos índices inflacionários.
Recentemente, alguns pesquisadores, como Hilary Hoynes e Jesse Rothstein, da UC Berkeley, argumentaram que muitos programas piloto de renda básica e avalições focam em tópicos para quais já temos evidências consideráveis, como se o fato de distribuir dinheiro reduz o esforço para o trabalho, e não o suficiente em questão que ainda não estão respondidas, como os efeitos macroeconômicos e “nos efeitos psicológicos e políticos da universalidade”.
O programa de Maricá não é verdadeiramente universal – para receber o pagamento, as pessoas devem estar inscritas numa base de dados municipal que inclui aqueles com renda máxima de até 3 vezes o salário mínimo brasileiro – mas é suficientemente diferente das avaliações existentes que devem fornecer conhecimento adicional real quando as avaliações da JFI e da equipe brasileira começarem no próximo ano (eles esperam continuar estudando, quantitativamente e com entrevistas qualitativas com os destinatários nos anos seguintes).
“A expansão é extremamente fascinante e é um lugar de saturação parcial, com potencial para resolver muitas questões de pesquisa ainda não respondidas”, diz Sidhya Balakrishnan, diretora de pesquisa da JFI e principal pesquisadora do projeto Maricá. “Eles estão animados para ver como isso pode ser aprimorado e ampliado para toda a população. Estamos reconhecendo os pontos de Hilary e Jesse e abordando alguns dos principais problemas com os pilotos”.
O programa de Maricá também é diferente do já existente Bolsa Família, um programa muito bem-sucedido e incrivelmente popular de transferência condicional de renda no Brasil que paga valores às famílias que cumprem determinados critérios, como vacinar e manter as crianças na escola. “Os benefícios são muito maiores”, diz Katz. “Há três anos, os beneficiários familiares médios do Bolsa Família recebiam 160 reais para 4 pessoas, então cerca de 40 reais para cada. Você recebe três vezes o valor desse programa – uma transferência de dinheiro muito, muito maior do que a BF oferece.”
Progresso em direção à renda básica
Nos Estados Unidos, o apoio à renda básica está frequentemente associado a empreendedores e entusiastas de tecnologia como Andrew Yang, que alertam para o desemprego causado pela automação em massa, e lançam a renda básica, financiada com um imposto sobre valor agregado, como a solução.
Nenhum país adotou a política de renda básica por essa razão ainda. Mas uma série de países e governos subnacionais, como Irã, Alasca e agora Maricá, adotou a renda básica de maneira a distribuir de maneira mais justa receitas do petróleo e outros recursos naturais.
Esse é um modelo reproduzível em todo o mundo em desenvolvimento e com renda média, sem mencionar outras cidades brasileiras. O maior país fora do Brasil, onde um programa de distribuição de renda baseado em petróleo poderia ter um grande impacto é a Nigéria, que tem 182 milhões de habitantes e uma considerável riqueza em royalties de recursos naturais.
Países menores com reservas de petróleo, como Angola e a Guiné Equatorial, também são lugares promissores. Em Angola, o gap da pobreza – a quantidade de dinheiro que seria necessária para elevar todos à linha de pobreza internacional – é de apenas 6% da receita do petróleo. Se, digamos, um quarto ou um terço da receita fosse distribuído como uma renda básica, você provavelmente poderia acabar com a extrema pobreza.
Essa abordagem não está livre de riscos; pode criar um poderoso eleitorado político para a continuação da indústria do petróleo, um perigo potencial em relação às mudanças climáticas. Mas se essas receitas do petróleo vão para alguém, podem muito bem ser destinada aos pobres dessas nações.
Mais informação sobre a Renda Básica em Maricá aqui!
Matéria publicada originalmente no Vox. Traduzido por Beatriz Abramo.