Uma via expressa para a renda básica universal?

Apesar do desmonte de políticas sociais dos últimos anos, os R$ 600 destinados aos trabalhadores informais desempregados durante a pandemia reforçam a prevalência das transferências de renda como meio versátil para alcançar diferentes dimensões das necessidades humanas

Em setembro de 2018, António Guterres proferiu seu primeiro discurso como secretário-geral da ONU para a Assembleia das Nações. Ao falar das mudanças no mundo do trabalho no século XXI, afirmou que será importante que os governos ao redor do mundo fortaleçam sua rede de proteção social, levando em conta a possibilidade de adotarem para isso uma renda básica universal. No ano 2000, Philippe van Parijs, filósofo belga tido como grande pensador do tema, apresentou uma contribuição intitulada “Renda básica: renda mínima garantida para o século XXI?”1 a um seminário da União Europeia destinado a levantar alternativas de combate à pobreza. Naquele ano, Guterres era o chefe do governo português, então na presidência da UE, e o texto de Van Parijs assentou as bases conceituais para a proposta que há anos se desenvolve.

A renda básica atrai atenção e concentra embates acalorados em função de seus atributos mais conhecidos, de se propor universal e de ser paga de forma incondicional. A universalidade responde ao direito de participação na riqueza socialmente produzida, acumulada por alguns em detrimento da sociedade em função de arranjos como o da propriedade privada. Há também razões práticas que a justifiquem como a melhor forma de superar o estigma da pobreza e a ineficiência gerados por esquemas tradicionais de garantia de renda.

A incondicionalidade, por sua vez, garante que o acesso à renda seja livre de obrigações e sanções, muitas vezes marcadas por arbitrariedades na relação do Estado com o cidadão. Naturalmente, fazemos a associação de que as condicionalidades equivalem às regras do Programa Bolsa Família relacionadas à frequência em serviços como educação e saúde, que, em verdade, deveriam ser um direito de todos, e não uma sujeição a verificação permanente e penalidades. Os sistemas de proteção social avançados são marcados por outras formas de controle, como a obrigação de adotar comportamentos relacionados ao mercado de trabalho, como procurar emprego ou ser forçado a aceitar alternativas pouco atraentes. A melhor expressão disso está no filme Eu, Daniel Blake, de Ken Loach (2016), que demonstra o drama do personagem principal na tentativa de receber benefícios sociais do governo.

Comércio fechado no Rio de Janeiro (Agência Brasil)

Há outras características fundamentais no debate clássico sobre a renda básica. Trata-se de um pagamento realizado em dinheiro. Cupons, vouchers e vales são meios de pagamento limitados a um número reduzido de atores do mercado ou destinados à aquisição de bens predefinidos. Cestas básicas seguem o mesmo raciocínio. O dinheiro permite maior autonomia e fortalece as escolhas individuais. A renda básica tem também regularidade e periodicidade preestabelecida, o que garante que seus beneficiários tenham previsibilidade e horizonte de futuro sobre recursos disponíveis para sua existência. Por fim, seu pagamento se dá de forma individual, o que significa que a categoria e o valor recebido não variam em função da condição familiar, seja de renda, seja de vínculo profissional.

Ao redor do mundo, mesmo antes da Covid-19, o debate sobre a renda básica universal faz questão de lembrar que essa não é uma ideia nova. Pelo contrário: a produção de teóricos, filósofos e economistas remonta a séculos de acúmulo sobre as formas de prover por meio do dinheiro condições mínimas de sobrevivência à população em geral.

Já há alguns anos a renda básica passou a ocupar a agenda sobre medidas que possam garantir segurança econômica diante da crescente automação dos processos produtivos, que elimina empregos e precariza trabalhadores. A crise atual pode ser um ensaio para uma necessidade que se aproxima. Resgatar as referências conceituais em torno do tema será fundamental para avaliar se programas emergenciais como o aprovado pelo Congresso Nacional brasileiro para combater os efeitos econômicos impostos pelo coronavírus nos aproximam daquilo que uma economia política que atravessa escolas de pensamentos tem trabalhado ao longo dos anos.

A proposta de auxílio emergencial oferece a chance de um salto no aperfeiçoamento das políticas de transferência de renda tal como elas existem. Aproximar essa proposta de uma renda básica passa por compreender qual é a melhor forma de incidir na transformação de um sistema de proteção social que nunca foi capaz de abranger toda a população brasileira, mas que pode ter na crise atual uma janela de oportunidade para alcançar ganhos relevantes. Tal como no caso da renda básica, o auxílio emergencial é pago em dinheiro, individualmente e de forma regular pelos meses da pandemia, para maiores de 18 anos, e é totalmente incondicional depois que a pessoa é considerada elegível. A política não é universal, mas não se pode negar que o fato de alcançar mais de 50 milhões de pessoas, assim como o Bolsa Família faz, a coloca na direção da expansão das políticas de proteção social em sentido universalista.

Em que pesem suas evidentes limitações, é possível afirmar, portanto, que se trata de uma renda básica emergencial e parcial com semelhanças em relação à renda básica. Não teria sido assim se dependesse apenas do governo de Jair Bolsonaro, que propôs um benefício por família de R$ 200 por três meses. Uma coalizão ampla, encabeçada pela Rede Brasileira de Renda Básica, Coalizão Negra por Direitos, Nossas, Instituto Ethos e Inesc, mobilizou a sociedade e realizou uma campanha pela aprovação do benefício emergencial.2 Ainda que Bolsonaro e sua equipe tenham dificultado a negociação e a efetivação dessa política, o resultado pode ser celebrado pelos defensores de uma renda básica como uma vitória há muito aguardada diante de um governo que removeu mais de 1,2 milhão de famílias do Bolsa Família entre maio de 2019 e março de 2020.

Apesar do desmonte de políticas sociais dos últimos anos, os R$ 600 destinados aos trabalhadores informais desempregados durante a pandemia reforçam a prevalência das transferências de renda como meio versátil para alcançar diferentes dimensões das necessidades humanas. É impensável considerar que isso seria possível sem os instrumentos de identificação da pobreza como o Cadastro Único, o alcance do Sistema Único de Assistência Social e a preservação de bancos públicos, como a Caixa Econômica Federal. Considerar, portanto, que o auxílio emergencial é um passo a mais na direção da renda básica reforça, ao mesmo tempo, o raciocínio de expansão permanente do Bolsa Família nesse sentido por meio de sua lógica de adicionar cada vez mais beneficiários.

Na prática, os programas voltados aos miseráveis, e ainda incapazes de solucionar as desigualdades do país, alinham-se à agenda de proteção social do Brasil estabelecida há quase duas décadas, quando o país ganhou uma lei para instituir uma Renda Básica de Cidadania, de autoria de Eduardo Suplicy, hoje celebrado de forma quase incontestável em relação à sua luta pela garantia de renda no país. A Lei n. 10.835, sancionada por Lula em 2004, determina que a universalidade será alcançada por etapas, começando pelos mais pobres, abrindo margem para afirmar que é isso que faz o Bolsa Família e, agora, o auxílio emergencial.

Uma das formas de resolver essa questão será a avaliação que a população beneficiária da política do tempo de crise fará de sua importância. Uma das questões fundamentais para o movimento por uma renda básica, que precisa ampliar seu alcance e estruturar-se junto aos milhões atingidos pela primeira vez por algo dessa natureza, será se a marcha pela renda básica ganhou impulsos que a tornem irrefreável. É certo que a própria mudança do mundo do trabalho e crises disruptivas, como o colapso ambiental, que há anos já se anuncia, podem moldar a proteção social necessária no século XXI.

Os liberais, que por anos defenderam medidas de focalização, mas que corretamente não deixaram de se somar à defesa da renda básica para o período de crise, precisarão compreender que a estabilidade econômica que tanto almejam para a economia não deve servir apenas aos investidores, em especial do mercado financeiro. Reduzir a incerteza para pessoas que lidam todos os dias com as dificuldades e aflições da vida real também é um mérito da renda básica que deve ser expandido.

O coronavírus tornou a humanidade testemunha de mudanças imediatas que poucas gerações presenciaram. Para a renda básica, que pertencia ao rol de utopias que sempre precisaram se defender contra a acusação de se tratarem de uma excentricidade, foi aberta uma via expressa para avançar sem que esteja certo o destino final dessa jornada. O tensionamento político no qual estamos imersos mantém em aberto o futuro da proteção social. O que temos como certo é que esse futuro deve deixar para trás o estado de normalidade anterior.3 Uma renda básica, universal, incondicional e permanente pode estar no horizonte de quem se preocupa com a cidadania, a dignidade e a liberdade humana.

 

Leandro Teodoro Ferreira é mestre em Políticas Públicas pela UFABC e presidente da Rede Brasileira de Renda Básica.

 

1 Philippe van Parijs, “Renda básica: renda mínima garantida para o século XXI?”, Estudos Avançados, v.14, n.40, 2000.

2 Ver: www.rendabasica.org.br.

3 Tatiana Roque e Leandro Ferreira, “Renda básica, antes folclórica, vira medida essencial para enfrentar crise do coronavírus”, Folha de S.Paulo, 30 mar. 2020.

 

Fonte: https://diplomatique.org.br/uma-via-expressa-para-a-renda-basica-universal/

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