Quem matou o Bolsa Família?

Governo apertou o gatilho, mas perícia indica que há cúmplices entre nós

Por Letícia Bartholo, Leandro Ferreira e Milton Coelho

Neste mês de novembro faleceu um dos programas sociais mais reco­nhecidos mundialmente, o Bolsa Família. Em seu lugar, entra o confuso Auxilio Brasil. Mas quem, afi­nal, matou o Bolsa?

Ora, o contexto nos faz buscar o caminho óbvio ao apontar o culpado – o governo federal e seu desdém pela área social. Porém, tal assassinato parece envolver trama mais com­plexa: o governo apertou o gatilho, mas a perícia indica que o local do crime foi organizado por muitos de nós. Sim, também ajudamos a ma­tar o Bolsa Família.

Nós ajudamos a matar o progra­ma quando, no exercício essencial da atividade de imprensa, optamos por linhas editoriais preconceituo­sas e sem embasamento empírico. E, negando as evidências, insistimos em chamá-lo, durante anos, de assistencialista, gerador de dependência ou mecanismo de compra de vo­tos. Atuando nos órgãos de contro­le, também ajudamos a executá-lo ao colocar nosso desejo de apare­cer acima da sobriedade necessária à fiscalização das políticas públicas. Alardeamos achados iniciais de auditoria como se fossem fatos con­clusivos. Lembram-se dos benefici­ários com propriedade de veículos caros ou que fizeram doações elei­torais de alto valor? Pois é, a apura­ção mostrou que a maioria expressi­va desses casos era fraude fiscal: pes­soas pobres usadas como laranjas. Ajudamos a matar o Bolsa com a nossa vaidade intelectual. Divulga­mos simulações com desenhos de novos programas cujo foco seria, em tese, muito melhor. Mas fize­mos isso sem esclarecer que a foca­lizava° do Bolsa Família estava pro­fundamente em linha com os pro­gramas internacionais de mesmo tipo e que nossos modelos analíti­cos baseavam-se em pressupostos pouco aderentes: Estado oniscien­te, pessoas pobres com total clareza das regras e incluídas digitalmente, rede de assistência social completa­mente ágil. E quando nós, servido­res públicos cuja função seria asse­gurara boa atuação estatal, nos dis­pusemos a fazer qualquer serviço, também o matamos. “Estamos sim­plesmente cumprindo ordens”. dis­semos, num bom exemplo de bana­lização do mal.

Colaboramos com sua morte por nossa paciência com o tiozão pole­mista na ceia de Natal. Era batata: em toda família, em todo Natal, lá estava o tiozão bradando o famo­so caso da “empregada da prima de uma tia de uma amiga delegue dei­xou de trabalhar e agora só quer sa­ber de fazer filho por conta do Bol­sa Família. Para não estragara ceia, nos calamos diante da maledicência sobre essa personagem tão famosa quanto irreal.

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Colaboramos com sua morte por nossa paciência com o tiozão polemista bradando o famoso caso da “empregada da prima de uma tia de uma amiga dele” que deixou de trabalhar e agora só quer saber de fazer filho por conta do Bolsa Família. (…) Calamo-nos diante da maledicência sobre essa personagem tão famosa quanto irreal

E o matamos de sobrecarga. O Bol­sa não podia somente dar o peixe: era preciso que ensinasse a pescar, instruísse° pescador sobre a devida manipulação do alimento, o conec­tasse à indústria alimentícia e, qui­çá. o transformasse num empresá­rio de sucesso. Exigimos do Bolsa Fa­mília, um programa de renda assis­tencial articulado à saúde e à educa­ção. que resolvesse toda a complexi­dade da pobreza brasileira.

Pois toda vez que agimos conforme esses exemplos, ou os reverbera­mos, ajudamos a construir a percep­ção de que seria um programa anti­quado. E o Bolsa não foi antiquado. Foi inovador e com excelentes resul­tados. De fato, tinha lacunas que ca­reciam de correção, e nós inclusive facilitamos sua morte ao lhe negar, durante i8 anos, melhorias impor­tantes, como a fixação de critérios e periodicidade de atualização das suas linhas de pobreza e valores de benefícios, o fim das filas e a exten­são de benefícios a famílias pobres sem filhos. Sim, mata-se também por omissão.

O Bolsa Família precisava ser me­lhorado, mas não merecia ser assas­sinado no improviso de uma medida provisória sem parâmetros monetá­rios, com benefícios pulverizados e tão calcada na ideia de que a pobre­za é um fenômeno de responsabili­dade individual. O Auxilio Brasil, es­te sim, nasce ultrapassado. pois se pauta numa concepção de pobreza

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Resta ao Bolsa o reconhecimento póstumo de um programa que viveu com dignidade e contribuiu para que milhões de pessoas pudessem expe­rimentá-la. A nós, cujas ações, pala­vras ou omissões colaboraram com o cenário do crime, resta a reflexão de que ele morreu também por so­berba. No caso, a nossa.

Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2021/11/quem-matou-o-bolsa-familia.shtml

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