Porque o país deve adotar um benefício universal a crianças

Programa seria mais justo e bem focalizado do que o sistema atual

Por Sergei Soares, Pedro de Souza e Outros

 

 

Recentemente, publicamos trabalhos em que se propõe a criação de um benefício universal para crianças. Isso mesmo: toda criança brasileira receberia, do nascimento até completar 18 anos, uma transferência modesta feita pelo Estado brasileiro. Em um momento de crise fiscal profunda, a criação de um novo benefício, pago não apenas às famílias pobres, mas também às famílias ricas, pode ser questionado. Mas queremos demonstrar, aqui, que esse benefício faz sentido sob diversos pontos de vista.

 

Primeiramente, o ponto de vista administrativo. O Brasil já faz transferências para crianças pobres (por meio do Bolsa Família), de classe média (por meio do Salário Família) e mesmo para crianças ricas (por meio do Salário Família) e mesmo para crianças ricas (por meio da dedução por dependente do Imposto de Renda da Pessoa Física).

 

Mas esse sistema de transferências é tremendamente desorganizado e falho. Paga benefícios em duplicidade, utiliza bases de dados diferentes, possui regras que variam de benefício para benefício e, especialmente, deixa muitas crianças de fora. Quando o Bolsa Família surgiu, um dos seus méritos foi unificar as transferências feitas para famílias pobres no Brasil, uma medida administrativa que foi muito bem-sucedida. Uma transferência universal para crianças representaria um passo adicional para aumentar a racionalidade administrativa das transferências feitas pelo governo federal, com o fim de pagamentos em duplicidade, bases e regras únicas e cobertura que se aproximasse de 100% das crianças brasileiras.

 

Segundo, o ponto de vista da proteção social. As taxas de extrema pobreza entre as crianças, mesmo com todas as transferências existentes, é duas vezes maior do que a média brasileira e quase 10 vezes superior às taxas de extrema pobreza entre os idosos. Embora o Brasil tenha três benefícios voltados para proteger as crianças de todas as faixas de renda, o sistema é tão falho que famílias de 17 milhões de crianças brasileiras não recebem qualquer benefício. Metade dessas crianças que não recebem nada do Estado brasileiro está entre os 30% mais pobres.

 

Estender a cobertura para todos, portanto, contribuirá para aumentar a proteção social dos mais pobres. Não é por acaso que um benefício universal para crianças foi defendido por Sir William Beveridge, no seu relatório de 1942, que deu robustos fundamentos para a construção do Estado de Bem-Estar social. Esse benefício é adotado por inúmeros países ao redor do mundo.

 

O terceiro ponto une um aspecto administrativo a outro de proteção social. Em consequência de seus vínculos precários ou frágeis com o mercado de trabalho, a população mais pobre sofre grandes variações de rendimento em curtos espaços de tempo. É comum, portanto, que uma família esteja acima da linha de seleção do Bolsa Família e entre na pobreza no mês seguinte.

 

Claro, ao entrar na pobreza, ela pode se cadastrar e receber a transferência do Bolsa Família. Ocorre que tudo isto demanda algum tempo: é preciso que a família se cadastre, que este cadastro seja analisado pelo sistema de concessão do Bolsa Família no mês seguinte, que o cartão seja emitido e chegue até seu destino. Durante este período requerido para a concessão do benefício, as crianças desta família já estarão sujeitas às privações da pobreza. E um benefício universal, contínuo e seguro, reduz este prejuízo.

 

Muitos podem argumentar que não faz sentido estender o Bolsa Família aos mais ricos. Mas a verdade é que os ricos brasileiros já têm o seu Bolsa Família. A dedução por dependente no IRPF, para quem está na alíquota máxima de 27,5%, representa uma transferência mensal de R$ 52 por filho, até ele atingir a maioridade (ou um pouco além, se ainda estiver estudando). O beneficiário do Bolsa Família recebe de R$ 41 a R$ 48 por filho por mês, até completar 18 anos.

 

Um benefício universal, pago a todos, acreditem, é mais justo e bem focalizado do que o sistema atual. E a transferência universal não significa que os mais pobres não possam receber uma complementação. A complementação de renda já existe, é feita por uma transferência modesta, dentro do Bolsa Família, chamada de benefício de superação da extrema pobreza. Ele pode e deve continuar existindo.

 

Quarto, o ponto de vista fiscal. Alguns podem sustentar que a extensão de um benefício a famílias de 17 milhões de crianças não seria factível na atual situação fiscal do País. Essa talvez seja a melhor notícia: temos condições fiscais de caminhar nessa direção. Estimamos que seriam necessários R$ 7,5 bilhões ao ano, em valores de 2017, para alcançar todas as mais de 50 milhões de crianças brasileiras. Esses valores podem ser obtidos apenas dando mais racionalidade ao atual conjunto de transferências de recursos feitas pelo governo federal, sem a necessidade de aumentar nenhum imposto.

 

Mais importante: o número de crianças irá diminuir nos próximos anos, o que abre espaço para que o valor dessa transferência seja progressivamente elevado em termos reais, tornando-a mais significativa.

 

Finalmente, o ponto de vista da coesão social. Temos muito pouca coisa que nos une, como sociedade. Ricos e pobres, no Brasil, compartilham muito pouco. Vivemos em um espaço apartado. Os serviços que frequentamos (de educação e saúde, por exemplo) são diferentes. Os níveis de insegurança que enfrentamos, covardemente díspares. Uma transferência feita pelo Estado brasileiro, de igual valor, feita por um mesmo programa para toda e qualquer criança brasileira, é não apenas administrativamente adequada, socialmente justa, e fiscalmente responsável: sinaliza para um futuro em que o Estado deixe de ser parte da máquina de criar desigualdades e passe a gerar oportunidades e um nível mínimo de proteção para todos. Um futuro em que todos nos vejamos como membros e construtores de um mesmo país.

 

Sergei Soares, Pedro Ferreira de Souza, Letícia Bartholo, Graziela Ansiliero, Rafael Guerreiro Osório e Luis Henrique Paiva são pesquisadores do IPEA.

 

Fonte:

https://valor.globo.com/opiniao/coluna/porque-o-pais-deve-adotar-um-beneficio-universal-a-criancas.ghtml

 

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