Pandemia força Brasil a discutir adoção da renda básica de cidadania

Em 1516, no clássico livro Utopia, o intelectual inglês Thomas More esboçou uma ideia que outros pensadores desenvolveriam ao longo do tempo e que só agora, cinco séculos depois, seria estudada com seriedade por países nos quatro cantos do mundo: a renda básica de cidadania.

Num trecho crítico à pena de morte, More escreveu: “Não seria preferível assegurar a subsistência de cada um, de maneira que ninguém se encontrasse diante da necessidade de roubar para ser em seguida executado?”. O que ele propôs, em outras palavras, foi que o Estado desse periodicamente a todos os indivíduos uma quantia suficiente para satisfazer suas necessidades básicas, como alimentação e moradia, sem exigir nenhuma contrapartida.

A atual pandemia pôs essa utopia na ordem do dia. Em razão da necessidade de isolamento social para desacelerar a propagação do coronavírus, uma multidão de pessoas no mundo ficou impedida de trabalhar e garantir o próprio sustento. No Brasil, definhou inclusive o mercado informal, sem carteira assinada, que em outros momentos conseguia absorver os trabalhadores expulsos do mercado formal.

livro Utopia, de 1516

A crise sanitária escancarou o tamanho do abismo que separa a base e o topo da pirâmide social. Para economistas, a situação não seria tão dramática para os pobres se a renda básica de cidadania ou pelo menos algum programa social robusto estivesse em execução. A Espanha, por exemplo, acaba de criar um programa de transferência de renda para beneficiar 850 mil famílias pobres.

Diante da explosão do desemprego, o governo brasileiro entendeu que o cobertor do Bolsa Família, o grande programa nacional de transferência de renda para a população carente, não é tão grande assim — nem no número de beneficiários, nem no valor entregue. Para esticar o cobertor, criou o auxílio emergencial, pago mensalmente desde o início da crise.

O Bolsa Família beneficia 41 milhões de pessoas. Cada família recebe em média R$ 190 mensais. O auxílio emergencial, por sua vez, chega a 64 milhões de indivíduos (incluindo parte dos beneficiários do Bolsa Família). Cada um ganha R$ 600, independentemente do tamanho da família.

Nenhum dos dois, contudo, pode ser chamado de renda básica de cidadania. Não são universais nem incondicionais. O Bolsa Família beneficia pessoas de baixa renda e exige que matriculem os filhos na escola e mantenham a vacinação deles em dia. O auxílio emergencial favorece trabalhadores pobres sem carteira assinada, além de ser um benefício que vai expirar em breve.

Pressionado pelo coronavírus, o governo, sem dar detalhes, prometeu ampliar o Bolsa Família em público e quantia, rebatizando-o de Renda Brasil. Senadores e deputados federais apresentaram projetos de lei com o mesmo espírito. Tanto no plano do Poder Executivo quanto nas propostas do Poder Legislativo, ainda não se trata da utópica renda básica de cidadania, mas sim de um novo passo que deixa o Brasil mais perto desse horizonte.

O senador José Serra (PSDB-SP), que redigiu um dos projetos de lei que estão em análise, afirma:

— A pandemia da covid-19 e seus efeitos socioeconômicos, que obrigaram governos em todo o mundo a fazer transferências de renda e proteger os mais vulneráveis, revelou que milhões de brasileiros estavam à margem, em uma espécie de limbo, fora tanto dos cadastros formais de empregadores e empregados quanto dos programas sociais. Isso nos deu um retrato bem mais nítido das carências brasileiras, nos obrigando a avançar em seu enfrentamento.

Nesta terça-feira (21), num evento na Câmara dos Deputados, será criada a Frente Parlamentar Mista em Defesa da Renda Básica, formada por deputados e senadores.

A renda básica de cidadania e programas assemelhados são uma ideia que consegue deixar do mesmo lado os defensores do Estado de bem-estar social e os adeptos do liberalismo econômico. Os primeiros entendem que a riqueza nacional deve ser desconcentrada e redistribuída, de modo a diminuir a desigualdade social. Os últimos enxergam as vantagens que o dinheiro no bolso da população mais pobre é capaz de gerar na economia como um todo, além de ser uma estratégia para igualar as oportunidades individuais na disputa pelo mercado de trabalho.

O senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), que é autor de um projeto de lei que amplia o Bolsa Família e fixa o valor mensal pago às pessoas mais pobres em meio salário mínimo (o equivalente hoje a cerca de R$ 500), apresenta argumentos nas duas linhas:

— Esta crise é a oportunidade de corrigirmos falhas de nossa seguridade social, notadamente a desproteção dos trabalhadores informais e dos mais vulneráveis. Além disso, diversos estudos mostram que programas de transferência de renda aumentam o consumo das famílias, impulsionando a economia. Medições mostram que, a cada R$ 1 gasto com o Bolsa Família, o produto interno bruto do Brasil cresce R$ 1,78.

Quando a renda das pessoas está garantida e elas podem consumir, uma engrenagem virtuosa se movimenta: o setor de serviços, a indústria e o comércio produzem, os empregos ficam preservados, o governo arrecada os respectivos impostos e as políticas públicas garantem sua fonte de financiamento, sem contar que as contas públicas no azul são um requisito para que a taxa de juros e a inflação permaneçam sob controle. Quando a população perde renda e a pobreza se alastra, essa complexa engrenagem entra em colapso.

Aplicativo do governo federal para solicitação do auxílio emergencial (foto: Barbara Batista/Agência Senado)

O grande entrave para a adoção da renda básica de cidadania são as limitações orçamentárias. Os gastos seriam altos demais, ainda mais neste momento de crise, em que a situação das contas públicas, que já estavam no vermelho, ficou ainda pior.

Em termos financeiros, segundo economistas, para o Brasil avançar em direção à renda básica, seria preciso aumentar a arrecadação tributária, retirar dinheiro de outras áreas ou então flexibilizar o teto de gastos públicos. Serra apresentou um projeto de lei que toma o primeiro caminho. Pela proposta, os dividendos e lucros recebidos por pessoa física, hoje livres de tributação, passariam a ser taxados. Segundo o senador, a parcela mais rica da população pagaria, mas também se beneficiaria:

— O gasto com a transferência de renda deve ser encarado como investimento. Além de ser um seguro social contra a miséria e o desamparo, todos ganham, inclusive os mais ricos, beneficiários finais dessa renda injetada na economia, que a faz girar mais rápido e de forma dinâmica. A transferência tem um altíssimo efeito multiplicador. Também é importante lembrar que, ao colocar dinheiro nas mãos dos mais vulneráveis, há um estímulo para que se afastem das atividades ilícitas às quais podem estar sujeitos por pura falta de oportunidades.

A economista Laura Carvalho, professora da Universidade de São Paulo (USP), aponta benefícios da renda básica que vão além do incentivo à economia e da diminuição da pobreza:

— Quando o trabalhador conta com uma renda básica generosa, ele ganha poder de barganha e, num mercado de trabalho precário, consegue recusar empregos indignos. A renda básica também permite que as pessoas se dediquem a atividades que não são mercantis, como serviços comunitários e trabalhos artísticos. Jovens artistas que estão começando a carreira, por exemplo, não se veem forçados a partir para o mercado de trabalho convencional.

Examinados com lupa por especialistas, os vários experimentos já feitos no mundo derrubaram certos mitos que pairavam sobre os programas de transferência de renda. O “efeito preguiça” é um dos mitos. Nenhum estudo mostrou que a renda fez os beneficiários se acomodarem, desistirem de trabalhar e optarem por viver à custa do Estado. Da mesma forma, tampouco se detectou que as famílias, com o intuito de fazer jus a um pagamento maior, passaram a ter mais filhos.

De acordo com estudiosos da questão, não é absurdo que a renda básica de cidadania garanta um mesmo pagamento tanto aos cidadãos pobres quanto aos ricos, os quais não precisam da ajuda governamental. Estes últimos devolveriam o dinheiro ao poder público por meio do Imposto de Renda. Uma das vantagens de a renda básica ser universal é que ela dispensa certos rigores burocráticos, como a manutenção de um cadastro sempre atualizado e a fiscalização constante para evitar fraudes.

Além disso, a universalidade elimina o risco da “armadilha da pobreza”. Crítica que se faz aos programas não universais, que costumam ter a baixa renda como critério de inclusão: eles inibiriam os beneficiários de procurar a ascensão social por meio de empregos com melhor salário, pois assim perderiam o direito ao benefício. O caráter universal, por fim, retira da renda básica o estigma de assistencialismo ou esmola.

— É hora de aprofundar o pacto que fizemos em 1988. Se com a Constituição universalizamos a proteção à saúde, que passou a ser direito de todos, e não apenas dos brasileiros com emprego formal, o momento é de fazer o mesmo com a proteção da renda — afirma o senador Eduardo Braga (MDB-AM).

Braga é autor de outro projeto de lei que amplia o Bolsa Família. Pela proposta, o benefício variaria de R$ 120 a R$ 600, conforme o tamanho da família, e seria pago à fatia mais carente da população, incluindo os trabalhadores do mercado informal. Embora não desenhe um programa universal, o projeto insta o governo a estender a renda a todos os cidadãos assim que a situação fiscal permitir.

O senador diz que a renda básica se tornará imprescindível cada vez mais, dada a tendência de encolhimento do mercado do trabalho:

— O futuro se mostra desafiador. A recuperação econômica ameaça ser lenta diante de uma crise inédita, que deixa milhões de desempregados. Para além dessa conjuntura, as novas tecnologias podem transformar diversas ocupações, deixando outros tantos sem emprego ou em postos precários. Governos de diversos países, organismos multilaterais e as principais empresas do planeta imaginam que a renda básica será parte desse futuro.

Uma das experiências internacionais mais estudadas é a do Alasca. No estado americano, todos os residentes, pobres e ricos, recebem um pagamento anual oriundo de impostos da exploração do petróleo. O valor varia conforme a arrecadação. Em 2008, no auge da extração petrolífera, cada cidadão recebeu US$ 3,3 mil (R$ 17,5 mil no câmbio atual). No ano passado, US$ 1,6 mil (R$ 8,6 mil). De estado mais desigual em termos sociais em 1980, o Alasca divide hoje com Utah o posto de estado mais igualitário dos Estados Unidos.

No Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), que é ligado ao Ministério da Economia, o formato da transferência de renda mais defendido é o que pagaria um valor mensal às crianças e aos adolescentes — valor, naturalmente, a ser administrado por seus pais. A idade surgiria como o único critério. Dentro desse grupo etário, portanto, seria um programa universal. Não se trata da renda básica de cidadania, mas chega muito perto dela.

As crianças e os adolescentes já recebem dinheiro público por diferentes mecanismos, conforme o estrato social. O Bolsa Família ajuda os jovens mais pobres, o Salário Família (benefício do INSS para trabalhadores do mercado formal com filhos de até 14 anos de idade) favorece os da classe média e as deduções do Imposto de Renda com a educação e a saúde de dependentes beneficiam particularmente os mais ricos.

— O problema é que, quando são olhados como um todo, esses benefícios criam um sistema terrível. Enquanto 4 milhões de crianças recebem dois deles, 17 milhões não recebem benefício nenhum — afirma o sociólogo Luis Henrique Paiva, pesquisador do Ipea. — Isso fica ainda mais terrível quando se considera que no Brasil a taxa de pobreza das crianças é duas vezes maior que a da população em geral e dez vezes maior que a dos idosos. Elas são, portanto, um grupo bastante desprotegido. Assim, os valores que hoje vão para o Bolsa Família, o Salário Família e as deduções do Imposto de Renda seriam unificados num programa que alcançaria universalmente as crianças brasileiras, com grande impacto social.

O Brasil, na realidade, já tem uma lei que obriga o poder público a pagar a renda básica de cidadania a todos os cidadãos. A norma passou a valer em 2004, nascida a partir de um projeto do então senador Eduardo Suplicy (PT-SP), hoje vereador em São Paulo. A lei, contudo, é pouco específica, sem detalhes de como concretamente seria o programa, e permite que a renda básica seja implantada aos poucos, em etapas com abrangência crescente. No entendimento de Suplicy, o Bolsa Família é a primeira etapa.

Ex-senador Eduardo Suplicy, autor da lei de 2004 que prevê a implantação da renda básica de cidadania

— A pandemia nos deu alerta de que já passou da hora de avançarmos — afirma ele. — Dediquei minha vida pública à luta pela renda básica de cidadania. Fico feliz que o governo agora a tenha colocado entre suas prioridades. Ao longo da história, a humanidade criou as utopias para tê-las como horizonte, como objetivo. As utopias nos movem. Eu acredito muito na renda básica de cidadania e vejo que estamos chegando cada vez mais perto da realização dessa utopia.

No sábado passado (11), Eduardo Suplicy enviou por correio a Jair Bolsonaro um exemplar do livro Utopia. De acordo com o vereador, o presidente da República poderia aproveitar o tempo de isolamento social forçado, por ter contraído o coronavírus, para ler a velha obra de Thomas More e se convencer da importância da renda básica de cidadania.

— Quando assumiu a Presidência, Bolsonaro prometeu cumprir fielmente a Constituição, que diz que “promover o bem de todos”, “erradicar a pobreza e a marginalização” e “reduzir as desigualdades sociais e regionais” são objetivos fundamentais do Brasil. Tudo isso depende da renda básica de cidadania. E, se o presidente também deseja diminuir a criminalidade no país, o mais acertado não é distribuir armas à população, mas sim renda.

Fonte: https://www12.senado.leg.br/noticias/infomaterias/2020/07/pandemia-forca-brasil-a-discutir-adocao-da-renda-basica-de-cidadania

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