Abono Salarial Emergencial para apoiar trabalhadores formais de baixa renda

Fábio Waltenberg, Jéssica Lago da Silva e Rodrigo Carvalho da Silva

Centro de Estudos sobre Desigualdade e Desenvolvimento

Universidade Federal Fluminense – 23/4/2020

Covid-19, recessão global e medidas de proteção a cidadãos vulneráeis

O número de solicitações de seguro-desemprego alcançou 26 milhões em apenas cinco semanas nos Estados Unidos; o PIB da China caiu 6,8% no primeiro trimestre. Nas duas maiores economias do planeta, são esses os primeiros indicadores dos efeitos econômicos da pandemia de Covid-19. Impactos devastadores, sob qualquer ponto de vista. Previsões indicam possível queda de 35% do PIB do Reino Unido no segundo trimestre, e efeitos igualmente catastróficos em outros países cujas economias praticamente pararam de funcionar. O Banco Mundial previu queda de 5% do PIB brasileiro em 2020, mas poderá ser maior – qualquer previsão do alcance e da profundidade da crise econômica feita neste momento é imprecisa. O que se sabe é que a recessão será global, e mais grave que a de 2008. Os efeitos nos países em desenvolvimento serão ainda mais sérios, pois adentraram a crise com problemas estruturais: altas taxas de pobreza, desemprego e informalidade no mercado de trabalho, por exemplo.

Monitoramentos indicam que ao menos 133 países já adotaram medidas a fim de protegerem sua população.[1] Alguns governos optaram pela criação de novos tipos de transferência de renda, em especial para trabalhadores do mercado informal. Outros aproveitaram programas existentes, aumentando valor ou cobertura. Outros optaram por subsidiar parte do salário de trabalhadores e impedir sua demissão por alguns meses. Em certos casos, os benefícios são condicionados a uma queda do faturamento da empresa; em outros, a presença de crianças no domicílio dá direito a um complemento ao subsídio.

No Brasil, medidas de garantia de renda e emprego foram tomadas pelo Congresso e pelos governos federal, estaduais e municipais. A pressão da sociedade civil foi importante para que políticos aprovassem medidas mais abrangentes do que aquelas anunciadas num primeiro momento. Um exemplo foi a campanha por uma renda emergencial, liderada pela Rede Brasileira de Renda Básica, endossada por cerca de 160 instituições não-governamentais, e apoiada por mais de meio milhão de pessoas.[2] A campanha colaborou para transformar a proposta anunciada pelo governo federal – um voucher de R$200 – em uma Renda Básica Emergencial de ao menos três meses, de R$600 por adulto (até dois por família), visando trabalhadores informais em situação de vulnerabilidade, acompanhada de ampliação do Programa Bolsa Família a mais 1,2 milhão de famílias. A pressão também serviu para o aperfeiçoamento no Senado, ao incluir todos os tipos de famílias monoparentais, retirar empecilhos observados no início da implementação, como exigência de CPFs regularizados, limites de renda defasados, ou possibilidade de bancos deduzirem do valor recebido dívidas anteriores.

Além da Renda Básica Emergencial, outras medidas de garantia de renda foram implementadas ou estão a caminho. Como é impossível listar as inúmeras iniciativas estaduais ou municipais, nos atemos às de nível nacional. Abriu-se uma primeira janela, até 31 de março, para saques de até R$998 do FGTS para beneficiários que possuíssem saldo. Ação semelhante, a partir de 15 de junho, liberará novo saque de R$ 1.045 do FGTS. (Não conhecemos o número de beneficiários, nem seu perfil, nem o valores médios sacados em cada uma das rodadas.) Outras medidas, ainda por concretizar, são a concessão de aposentadorias a pessoas que estão na fila há meses, e a antecipação do décimo-terceiro de aposentados, pensionistas e beneficiários do auxílio-doença.

As medidas de proteção de renda adotadas no plano nacional, bem como as de iniciativa de estados e municípios, são muito importantes, e precisam ser acompanhadas de perto em sua execução. Mas cabe indagar se todos os cidadãos vulneráveis foram contemplados. Pensamos aqui sobretudo nos trabalhadores formais de baixa renda. É certo que eles têm acesso a benefícios contributivos, mas também estão expostos a instabilidades econômicas, com possíveis oscilações de renda ou até perda do emprego.

Segundo relatório da OIT,[3] a pandemia afetará trabalho e renda de 3,3 bilhões de pessoas, e de forma mais intensa setores como transporte, armazenamento, comunicação, serviços de alimentação, imóveis e serviços administrativos correlacionados, atacado e varejo, e reparos automotivos – nos quais atuam cerca de 43% dos trabalhadores no continente americano. Contingente expressivo de trabalhadores nesses setores tem salários baixos e pouca instrução, indicativos de maior vulnerabilidade. Estudo da USP referenda previsões pouco alvissareiras para o mercado de trabalho brasileiro[4]: 80% dos trabalhadores brasileiros correriam o risco de perder emprego ou parte da renda, incluindo grande número empregados no setor formal.

A medida provisória 936/2020 – Programa Emergencial de Manutenção de Emprego e Renda – abarca trabalhadores formais de baixa renda. Prevê redução proporcional da jornada e salários ou suspensão temporária do contrato de trabalho e pagamento de benefício emergencial. As reduções poderão ser de 25%, 50% ou 70%, por três meses, com possibilidade de outros percentuais em acordos com os trabalhadores. O governo complementará a renda dos empregados, com base no valor do seguro-desemprego a que teriam direito: por exemplo, diante de um corte salarial de 50%, o governo pagará ao trabalhador 50% do seguro-desemprego. Já as suspensões de contratos serão de dois meses, e o governo pagará total ou parcialmente o seguro-desemprego, a depender do faturamento da empresa, e a renda de reposição não será menor que o valor do salário mínimo.

 

Limites das políticas na proteção de trabalhadores formais de baixa renda

A MP é permeada de defeitos. Primeiro, protege pouco o emprego. A empresa que adotar redução da jornada por um período de três meses não poderá demitir apenas por igual período depois disso; na modalidade de suspensão de contratos, apenas dois meses de proteção, além dos dois de vigência. Ou seja, em quatro a seis meses, o trabalhador afetado por redução ou suspensão poderá estar desempregado. Segundo, a MP abre espaço para acordo individual, contrariando a Constituição, que proíbe redução de salários que não seja acordada coletivamente.[5] Terceiro, durante a vigência da redução ou da suspensão, a empresa fica desobrigada de recolher o valor habitual de contribuição patronal ao INSS (valor zerado no caso de suspensão), de forma que o trabalhador perde valor de contribuição para seus futuros benefícios previdenciários (e tempo de contribuição no caso de suspensão).[6]

O distanciamento social exigido como estratégia de combate à pandemia criou duas categorias profissionais: dos que continuam a realizar suas tarefas laborais em regime de teletrabalho, e daqueles impossibilitados de o fazer, especialmente quem atua no comércio, serviços e terceirizados, à exceção dos empregados em áreas essenciais, como saúde, limpeza urbana ou supermercados. Posicionados na cauda inferior da distribuição salarial do mercado de trabalho formal, os trabalhadores que recebem entre 1 e 2 salários mínimos desempenham trabalhos mais precários e instáveis e, via de regra, não podem fazê-lo remotamente, como é o caso de faxineiros, vendedores, ou garçons por exemplo. Possuem maiores chances de serem demitidos, de terem a jornada e o salário reduzidos ou de terem seu contrato de trabalho suspenso. E muitos já estão enfrentando queda nos seus rendimentos, porque habitualmente contam com renda de gorjetas ou comissões, que minguaram ou desapareceram.

Demitidos podem solicitar o seguro-desemprego, mas o recebimento do benefício ocorre, na melhor das hipóteses, cerca de 40 dias após a demissão. Como o seguro-desemprego varia de R$ 1.045 a R$ 1.813,02, não é certo que o empregado demitido mantenha sua renda mensal habitual. Pelas condições da MP 936/2020, se uma empresa reduzir em 70% jornada e salário de um trabalhador que recebe R$ 2.090 mensais (dois salários mínimos), a empresa pagará R$ 627 ao trabalhador, enquanto o governo lhe transferirá R$ 1.067,42, que é 70% do valor do seguro-desemprego a que este trabalhador teria direito. A remuneração final é de R$ 1.694,42, com perda de R$ 395,58 mensais, ou R$ R$ 1.186,74 em três meses.[7] Em caso de suspensão de contrato, um trabalhador nas mesmas condições incorreria em perdas mensais entre R$395,58 e R$ 565,11.

Nos três casos – demissão, redução, suspensão –, não são desprezíveis as possíveis reduções de renda desses trabalhadores cujos rendimentos já são baixos – cortes particularmente preocupantes no momento em que crianças não recebem merenda em escolas fechadas, surgem despesas com produtos de higiene e saúde, e aumentam gastos domésticos pelo maior tempo passado em casa.

No mesmo momento em que se implementam benefícios para bancos, empresas, MEIs, conta-próprias, trabalhadores informais, aposentados, pensionistas, beneficiários de outros auxílios contributivos do INSS e de programas de assistência social, seria justo dar um tratamento mais digno aos trabalhadores formais de baixa renda, assegurando-lhes renda tão próxima quanto possível da que tinham antes da pandemia. Uma forma de protegê-los melhor é acionar mecanismos do Abono Salarial.

 

Abono Salarial Emergencial como solução

Benefício anual que varia entre um doze-avo de salário mínimo e um salário mínimo, (hoje R$88 a R$1.045), o Abono Salarial destina-se a trabalhadores do mercado formal que contribuem para o PIS/PASEP há cinco anos e cujos salários médios variam entre um e dois salários mínimos.

Recentemente, o governo federal anunciou antecipação em um mês dos calendários de pagamento do abono salarial, tanto para os assalariados de 2018 (fim do pagamento passou de julho para junho de 2020), quanto para os de 2019 (início do pagamento passou de julho para junho de 2020). A iniciativa é insuficiente. Tomando apenas os que cumpriram as condições de elegibilidade por ter trabalhado em 2019, o calendário anunciado estipula que os benefícios serão pagos entre junho de 2020 e março de 2021, a depender do mês de aniversário (PIS, setor privado) ou um número de registro (PASEP, setor público). Mas as dificuldades financeiras das pessoas são imediatas; um benefício recebido no primeiro trimestre de 2021 não trará alento no pico da pandemia, neste segundo trimestre de 2020. Uma medida mais sensata é o pagamento do Abono Salarial a todos no mês de maio de 2020. Note-se que aqui não se trata de nenhum pagamento adicional ao já previsto, somente uma antecipação de benefícios que terão de ser pagos de qualquer forma.

Já existe um cadastro ativo e atualizado, e mais: uma sistemática de transferência de recursos aos bancos públicos que gerem esses pagamentos. Tudo isso facilita e agiliza o alcance a esse grupo de trabalhadores de baixa renda. É um caminho relativamente suave para fazer chegar a cerca de 23 milhões de trabalhadores um complemento imediato de sua renda. A medida teria efeitos benéficos que não se limitariam aos contemplados e suas famílias, primeiro porque significaria a entrada em circulação na economia de uma boa massa de recursos. Segundo, porque famílias de baixa renda têm alta propensão a consumir – por terem pouca folga em seu orçamento doméstico, não conseguem poupar muito, e acabam por destinar uma grande proporção de sua renda ao consumo. De forma que a medida proposta seria uma estratégia eficaz de dar algum ânimo à demanda, muito deprimida neste momento, trazendo vantagens aos pequenos comércios e serviços locais.

Injetar um bom volume de recursos, dirigidos a trabalhadores vulneráveis e com alta propensão a consumir por meio da antecipação de uma renda que já têm direito a receber é importante. Mas como os valores do abono oscilam entre R$88 e R$1.045, a medida proposta acima seria insuficiente para algumas famílias. Há famílias com um trabalhador no mercado formal e outro no mercado informal, e diante da impossibilidade de o segundo trabalhar, a família já pode estar sofrendo perda de renda, e não necessariamente se enquadrar em critérios de elegibilidade de outros benefícios.

Em razão disso, e da gravidade da situação, é necessário ir além, com a concessão de um Abono Salarial Emergencial, de R$400 mensais por trabalhador elegível, a ser pago nos meses de maio a junho de 2020. Com essa medida, parte das perdas salariais dos trabalhadores formais mais pobres advindas da aplicação da MP 936/2020 seria compensada, assegurando, em momento de tamanha incerteza, não apenas uma maior probabilidade de manutenção (ao menos provisória) do emprego via operacionalização da MP, mas também de uma renda igual ou próxima à habitual, via a aplicação desta nossa proposta.

Duas objeções imediatas seriam: (1) há risco de a medida beneficiar famílias que não necessitariam de renda adicional, (2) qual o custo e como financiar? É possível que o Abono Salarial Emergencial alcance famílias não particularmente necessitadas, mas não é um problema tão sério a esta altura, em função das incertezas reinantes: pode ser que em maio a família não esteja necessitada, mas em junho, sim. É melhor errar para mais do que para menos neste momento.

Sobre custos e financiamento, com relação à primeira proposta, de pagamento imediato do abono referente a 2019, o custo orçamentário seria nulo para a fração já prevista para pagamento em 2020, e positivo apenas para os desembolsos previstos para 2021 – contudo, estes custos deixariam de onerar o orçamento de 2021. Já o Abono Salarial Emergencial teria um custo de cerca de R$9 bilhões mensais. Como economistas, somos treinados a nunca considerar custos sem levar em conta benefícios. Em nosso entender, esses gastos são justificáveis pelos impactos positivos já mencionados: um pequeno incremento da segurança econômica de muitos de nossos compatriotas em situação de vulnerabilidade, e estímulo à demanda em momento de depressão econômica. Não se trata de gasto permanente. A forma de financiar gastos emergenciais é uma questão a se discutir, nas instâncias adequadas, depois de passada a crise.

 

[1] Gentilini, Ugo; et al. Social Protection and Jobs Responses to COVID-19: A Real-Time Review of Country Measures. 2020. 114 p.p.

[2] Sobre a campanha pela Renda Básica Emergencial, ver: https://www.opendemocracy.net/en/democraciaabierta/covid-19-brazil-implements-basic-income-policy-following-massive-civil-society-campaign/.

[3] International Labour Organization. ILO Monitor 2nd edition: COVID-19 and the World of Work – Updated Estimates and Analysis. Geneva. 2020. 11 p.p.

[4] Estudo descrito em reportagem da Folha de São Paulo no dia 18/4/2020: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/04/crise-do-coronavirus-expoe-81-da-forca-de-trabalho-a-risco-de-perda-de-renda.shtml.

[5] Ver: https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/as-primeiras-criticas-a-medida-provisoria-936/.

[6] Ver: https://exame.abril.com.br/seu-dinheiro/mp-936-trabalhador-com-contrato-suspenso-deve-contribuir-sozinho-ao-inss/.

[7] Ver: https://www.dieese.org.br/materialinstitucional/apresentacaoCalculadoraMP936.html?r=1587580759542#calcula.

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